quarta-feira, 11 de julho de 2012

Sem Salto :)

Espero que gostem de minha crônica, recentemente premiada:

Virgínia foi encontrada em uma caixa de sapato por um cão andarilho pastor alemão que a levou diante da porta dos seus pais adotivos, fato sempre recordado nas festas familiares de Batizado, Comunhão, Natal, aniversários. Inesquecível e enigmática, a frase na caixa que trazia a menina: "Gente que nasceu para ser estrela nunca chega a lamparina." Que metamorfose havia sido, afinal, reservada à Virgínia?​
Na adolescência achava tudo um marasmo rotineiro. Começou então a colecionar papel de cartas e pôsteres de galãs do cinema e da TV, colados no armário e pelas paredes insípidas de um quarto igual a tantos. Nas infinitas tardes escrevia cartas para os musos ali colados, objeto de desejo e extravasamento. Diante do espelho imitava as famosas atrizes com penteados e maquiagens de forte impacto. Seus maiores prazeres consistiam em comprar esmaltes, algum pisante com salto altaneiro e batons em vermelho vivo com a parca mesada recebida da mãe, uma circunspecta funcionária pública toda ciente da boa ação ao acolher a menina trazida pelo cão.​
Mocinha, começou a trabalhar numa sapataria em Bom Sucesso, cidadezinha vizinha. Recortava das revistas fotos de moços bem apessoados, barriga tanquinho e nariz empoado, e estava sempre a par de toda e qualquer bobagem publicada sobre a vida exposta dos atores. Imaginava-se ao lado deles na praia, almoçando junto, sendo levada para alguma festa. Sabia tudo que ocorria nos bastidores da vida dos famosos e, nos intervalos, deixava as colegas de expediente a par dos acontecimentos amorosos dos bonitões, fazendo-as gargalhar com o relato aumentado por ela. Vivia enfiada no estoque da loja, provando uns tantos saltos e anunciando às colegas que nas próximas férias iria ao Rio de Janeiro. A meta era caminhar no calçadão de Copacaba em alto estilo entre os artistas todos. Nos dias de missa pedia a Deus que o tal dia chegasse logo e que a vida revelasse uma oportunidade para seu projeto de Cinderela hipermoderna.​
Enquanto o toque mágico não se dava, evitava sair para festas e comer bobagem na pracinha, jogando conversa fora. Economizava suas gorjetas, cada mínimo caraminguá, para a passagem. Voltava da missa introspectiva, remoendo os planos, e sempre era motivo de piadas e assobios de uns tantos que estranhavam aquela criatura tão fora de padrão. Virgínia se sabia ligeiramente alheia ao tempo presente. Destinava suas noites a poses contemplativas na janela e aos filmes. Era viciada e já havia visto incontáveis vezes ”A Princesa e o Plebeu”, com Gregory Peck e Audrey Hepburn. Sabia de cor quase todas as falas.
Para acelerar a partida, resolveu vender nas horas vagas e antes da missa, algodão doce para ganhar um extra. Trajava sempre o mesmo cardigan verde musgo e uma blusa azul subtraídos de uma vitrine no centro de Bom Sucesso que lembrava o visual de Audrey em “Bonequinha de Luxo”, outra de suas fixações cinematográficas. Era assim que gostaria de ser vista num provável encontro com um homenzarrão dos filmes. Dava de ombros para os moços da cidadezinha, tendo histórico de mordidelas nos garotos que ousaram um pouco mais. Assim que alcançou o valor para a desejada passagem interestadual, colocou suas trouxas numa maleta bege, juntou as economias, recolheu o dinheiro das férias e seguiu para o Rio em ônibus semi-leito, supremo sacrifício de quem esperava toda sorte de bonança.
Desembarcou em Copacabana e se deparou com a praia, uma banca de revistas gigante e um quiosque. Sentou-se ali mesmo numa cadeira amarela de plástico, tomou uma água de coco, como via nas revistas as famosas fazerem e suspirou: – Estou na cidade maravilhosa, aqui é meu ambiente!
Logo topou com o anúncio em destaque que dizia "Seja atriz!" em letras garrafais. Anotou o endereço, colocou o papel entre os seios, à la Sofia Loren, mas não resistiu ao mar. Largou a maleta no quiosque e correu para abraçar Netuno. Tirou o cardigan e saiu em disparada, ainda de vestido, largando os saltos pela areia fofa.
Ficou abismada com a imensidão do mar, levou um caldo de primeira e saiu rolando até o raso. Um rapazinho meio pálido e raquítico socorreu-a, mas não houve o desfalecimento com o qual sonhara assim, de primeira. O franzino, antítese de menino do Rio, a acompanhou até o Leme onde aconteceria o tal teste, ganhando uma bela mordida na mão esquerda ao tentar abraçá-la, meio saliente.
Ao chegar sua vez, o diretor pede que ela simule um animal diante de uma cadeira. Logo surgiu uma cadela brava e alterada pela fome recorrente. Virgínia latia descontroladamente para o objeto e mostrava os dentes ao diretor. Na avaliação, o golpe curto e grosso: – Sugiro que você volte a suas raízes e resgate esse seu potencial.
Ela pediu uma segunda chance e recebeu um papelote com a frase: "Me ame pouco, mas me ame por muito tempo", que deveria ser repetida com vontade e força persuasiva. Respirou e tentou se jogar dramaticamente na fala, mas só conseguiu emitir ganidos, entre um rosnado quase imperceptível e outro. O diretor suspirou e mandou vir o próximo. Ela então despediu-se simulando um beijo no rosto dele, enquanto cravava os caninos frescos nas bochechas gordas do homem. Diante da estupefação geral, calçou seu alto, saiu sem dizer tchau e balançando ligeiramente como se tivesse um rabo mas, definitivamente, não entre as pernas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário